Todas as pessoas podem apresentar problemas psicológicos, emocionais e comportamentais em alguma fase da vida. Porém, a infância e adolescência são períodos cruciais para que os indivíduos desenvolvam uma boa saúde mental. Crianças e jovens com condições de distúrbios mentais, quando não tratados, podem perder momentos preciosos de suas vidas. As crianças que sofrem com as dificuldades de um transtorno mental, por exemplo, podem deixar a escola precocemente e, em consequência disso, ter no futuro dificuldades para se relacionar ou trabalhar. Por isso, a atenção plena à saúde da mente na infância e adolescência faz muita diferença na vida adulta.
A Associação de Apoio ao Projeto Quixote, localizada em São Paulo – SP, atende cerca de 300 crianças e adolescentes, entre 6 e 17 anos, em situação de vulnerabilidade social, e mostra que o acolhimento tem grandes impactos na saúde mental destes meninos e meninas. O projeto foi um dos vencedoras do Prêmio Criança 2020, realizado pela Fundação Abrinq. Nesta última edição, a premiação reconheceu três iniciativas voltadas à saúde mental de crianças e adolescentes realizadas por organizações sociais.
Bernardo*, então com 17 anos, teve a sua vida transformada quando foi reencontrado pela equipe de educadores do projeto, em abril do ano passado - auge da pandemia - em situação de rua e acolhido novamente.
O reencontro na Avenida Paulista
“Em uma tarde, enquanto caminhávamos pela Avenida Paulista, em São Paulo - SP, um adolescente com rosto familiar chamou-nos a atenção. Ele arrastava um carrinho enquanto recolhia latinhas vazias de cerveja e refrigerante, retirava os lacres, amassava e, por fim, depositava na caixa de supermercado acoplada no carrinho. Ao nos aproximarmos, a educadora Bruna, logo o reconheceu e, ao iniciarmos uma conversa, ele foi receptivo e simpático à nossa presença. Era o Bernardo, que aos 13 anos fora acompanhado pelos profissionais do Projeto Quixote, mas que encerrou o processo conosco, pois vinculou-se a uma outra instituição”, conta Thales da Silva, educador da associação.
Thales relembra que o período em que Bernardo esteve nas ruas em situação de trabalho infantil, além do abandono e da interrupção do tratamento, ele acabou sendo vítima, algumas vezes, de violência física. “Ele passou a levar uma barra de ferro dentro da caixa, no carrinho, para a sua proteção. Bernardo nos contou que isso passou a ser necessário, pois já sofreu agressões nas ruas em algumas ocasiões, além de evitar que as suas latinhas fossem furtadas”.
Realidade transformada
O processo de readaptação do adolescente ao Quixote foi lento, continua o educador. “O foco de nosso trabalho com ele era a música. Era o atrativo para que ele voltasse definitivamente para a nossa instituição. Bernardo nos contava sobre como gostava de tocar violão com seu pai e como aprendeu os acordes durante as antigas aulas que fazia no projeto, quando mais novo. No início, ele nos visitava uma vez por semana. Depois, as idas passaram a ser mais frequentes, até estar conosco todos os dias”.
A psicóloga, coordenadora do serviço e fundadora do Projeto Quixote, Cecília Motta, relata que Bernardo necessita de acompanhamento e cuidados médicos e psicológicos especializados, e o retorno dele ao Projeto Quixote foi muito importante para a continuidade do tratamento que havia sido interrompido no passado. “Ele foi retornando aos poucos ao projeto. A equipe de profissionais foi trabalhando aos poucos o retorno dele. Foi necessário providenciar novo documento de identidade e restabelecer o contato junto ao pai e a avó e ele voltou para casa. Retomamos o acompanhamento com a família para entender melhor a dinâmica familiar e tentar intervir junto a seus responsáveis para que pudessem atuar em movimento de apoio, proteção e cuidado para com Bernardo”.
Hoje, aos 18 anos, Bernardo retornou à escola e participa de atividades nos grupos de informática, aulas de violão, banda musical e frequenta um dos grupos terapêuticos do Projeto Quixote. “Ele recebe apoio pedagógico para auxiliá-lo nas questões escolares, orientações sobre mercado de trabalho e é acompanhado de perto pela psicóloga e o psiquiatra. Bernardo hoje deixou as ruas e não recolhe mais latinhas”, finaliza a psicóloga Cecília.
Olhar para o futuro
O Projeto Quixote está completando 25 anos este ano. Ele nasceu com a missão de atender crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade, sempre com o olhar voltado para a saúde mental.
Uma característica que gera destaque para a organização é o fato de não estabelecer pré-requisitos para a criança ou o adolescente participar do projeto. “Não é necessário estar acompanhado de um responsável, possuir documentos em mãos ou agendar as visitas. Basta comparecer na instituição que ele será acolhido. Seguimos firme com o propósito de proporcionar a oportunidade de um futuro melhor e com mais saúde mental para inúmeras crianças e adolescentes, como o Bernardo”, finaliza Cecília.
Conheça as outras iniciativas vencedoras do Prêmio Criança 2020:
Projeto Com Tato — Fortalecer para transformar histórias
Organização Manaíra — “A verdadeira mudança começa na cabeça e no coração de cada um”
* Nome e imagem alterados para preservar a identidade do adolescente.