Rayula nunca vai se esquecer de quando era criança. Desde os seus nove anos, seus pais precisavam passar a semana ou até meses fora de casa para trabalhar e, assim, não deixar que coisas básicas faltassem na rotina da família.
Seu pai, trabalhava como fiscal na plantação de café, em Espírito Santo, cerca de 700km de distância da cidade em que moravam: Minas Novas (MG). Por isso, passava até oito meses longe de casa para poder trabalhar. Enquanto sua mãe trabalhava na agricultura, plantava e colhia mandiocas para produzir farinha. Devido a rotina puxada, voltava para casa somente aos finais de semana, quando conseguia cuidar da família.
Rayula tinha dois irmãos pequenos e não podia deixá-los sozinhos para que pudesse brincar e estudar. Com os pais longe, precisou assumir as responsabilidades da casa e dos irmãos. Passou a cuidar deles, dar mamadeira, brincar e fazê-los dormir, para depois fazer as tarefas da casa. Cozinhava, cuidava da horta que tinham e dos animais, mantinha tudo em ordem e, quando acabava, exausta, não tinha como se dedicar aos estudos e ao principal: ser criança.
“Com nove anos eu tinha que estudar, fazer comida, às vezes eu não aguentava tirar a panela do fogão e eu tinha que fazer, porque não tínhamos outra opção. Se minha mãe parasse de trabalhar íamos passar necessidade”, conta Rayula.
Mesmo com todas essas responsabilidades, ela não desistiu de estudar e sonhar com um futuro melhor. No entanto, para não deixar seus irmãos de um e dois anos sozinhos em casa, ela os levava consigo para a escola, chegando muitas vezes a estudar com eles no colo.
“Chegava o momento em que eu tinha que ir para a sala de aula e levá-los comigo. Às vezes dava a hora de comer e eu tinha que sair da sala para dar mamadeira, porque eles não paravam de chorar”, comenta.
As professoras apesar de saberem que aquilo era errado, não denunciavam para que as crianças não parassem de estudar, visto que aquela era a realidade da maioria dos alunos e que não teriam outra opção a não ser largar os estudos.
As dificuldades de estudar não eram só dentro da escola, quando os professores passavam lição de casa, na maioria das vezes Rayula estava ocupada cuidando dos irmãos. “Eu sou uma pessoa apaixonada por estudar e isso me afetou bastante porque minhas notas começaram a cair”, completa.
Quando pensava que as coisas não poderiam ficar pior, Rayula precisou ajudar a mãe na roça para completar a renda familiar e, assim, suprir todas as necessidades da família. Com 11 anos, ela acordava 3 horas da manhã para cortar e cozinhar mandiocas, auxiliando sua mãe na produção de farinha.
Na produção, elas prensavam a mandioca até que virasse farelo para que no dia seguinte pudessem torrá-lo. Haviam dois fornos, um para que sua mãe manuseasse e o outro para ela. As duas passavam o dia inteiro torrando farinha para vendê-la aos supermercados da região. Era o que garantia boa parte da renda.
“Passávamos o dia inteiro na roça, arrancando, descascando e prensando a mandioca. Na prensa tem uma roda que eu precisava colocar bastante força para que virasse farelo, depois tínhamos que puxar toda a água para ficar seca. No dia seguinte, acordávamos cedo para torrar o farelo. Meio dia parávamos para cozinhar e depois voltávamos para o forno”, lembra.
Ainda assim, a pequena Rayula não desistiu e confiante de que poderia mudar a realidade na qual vivia, passou a frequentar o projeto Melhor de Mim, da Associação Minasnovense de Promoção ao Lavrador e a Infância da área Rural. No projeto, ela e sua família passaram a entender mais sobre o trabalho infantil e conhecer as consequências que ele causa para a criança.
“Depois que eu comecei a ter as palestras e as atividades, eu ficava com receio de chegar em casa e falar que aquilo era exploração, que não era daquele jeito. A partir do momento que passou a ter reuniões com os pais e eles começaram a entender o que realmente era trabalho infantil, eles começaram a tirar a gente desse trabalho”, comenta.
Com 15 anos, Rayula parou de trabalhar e pode se dedicar totalmente aos estudos. Hoje, com 18 anos, já se formou no ensino médio e atualmente é monitora em um projeto semelhante ao que participou, planeja as atividades e trabalha com as crianças e os jovens da comunidade. Confiante, sonha em fazer agronomia para dar continuidade ao trabalho da família. “Tenho vontade de fazer agronomia e eu vou fazer, mas a distância”, relata.
Emocionada, Rayula conta como se sente ao lembrar do passado: “Realmente foi muito difícil, eu não tive infância. Sofri muito para conquistar as minhas coisas e por causa desse amadurecimento muito nova eu não consigo colocar dificuldades nas coisas, quando eu quero eu corro atrás”.
Rayula foi uma entre mais de 2 milhões de crianças e adolescentes que trabalham diariamente, perdendo a oportunidade de estudar, brincar e se desenvolver. Perdendo o direito de ser criança.
Diga não ao trabalho infantil para que outras meninas e meninos não passem pelo que Rayula passou.
*Imagem alterada para proteger a identidade dos envolvidos.