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Direito ao presente: 30 anos do ECA num contexto de pandemia

11/12/2020
Direito ao presente: 30 anos do ECA num contexto de pandemia

Por Rubens Naves e Maria Lygia Quartim de Moraes1

 

Temos leis e mecanismos de gestão pública que dizem respeito a um projeto de nação que não sonega o bem-estar de seu povo em nome de um sistema econômico que beneficia poucos. Deste rol de conquistas da cidadania faz parte o Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei 8069/90, mais conhecido como ECA.

O ECA surge no bojo do movimento de democratização que redesenhou o país após décadas da ditadura militar, iniciada no golpe de 1964. Faz parte do arcabouço legal que lança as bases para um Brasil menos desigual e mais cidadão. Sancionado em 1990, o Estatuto da Criança e do Adolescente é inspirado na Convenção sobre os Direitos das Crianças, tratado aprovado pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 1989 e vai ao encontro dos anseios da forte mobilização popular que cimenta o retorno à democracia.

Ainda que a palavra “estatuto” possa confundir os leigos, o ECA é uma lei completa que explicita e regulamenta o artigo 227 da Constituição Federal de 1988. Estabelece que a criança é um ser em formação e que seu cuidado é da responsabilidade de família, do Estado e da comunidade. Como veremos mais adiante, um tripé que atua de forma diferenciada de acordo com gênero, raça e classe social.

Ao longo dos últimos 30 anos, o ECA implementou em todo o território nacional uma extensa rede de proteção, amparo e cuidados à criança e ao adolescente. Mesmo tendo sua centralidade na educação, o Estatuto ramifica seu alcance para as áreas da saúde e do judiciário. Cria um Sistema de Garantia dos Direitos que imprime um novo significado para a atuação da Justiça Juvenil, do Ministério Público e da Defensoria Pública. Marca sua presença em cada município da federação por meio dos conselhos municipais da criança e do adolescente e conselhos tutelares: em 2015, apenas cinco municípios da federação careciam de Conselho Tutelar instalado.2

Desde sua criação, o ECA obteve conquistas importantes: crianças e adolescentes passaram a ser considerados titulares de direitos, aportando um novo marco para a atuação dos governantes e das organizações da sociedade civil ao permitir a discussão judicial de direitos sociais. Foi com base nesta premissa que, no município de São Paulo, as mães de crianças que não tinham acesso à Educação Infantil processaram a prefeitura, resultando numa intensa judicialização pelo acesso ao direito da Educação Infantil.

Em 2016, a fila de espera oficial na cidade de São Paulo era de 103,4 mil crianças para as creches e 3,4 mil na pré-escola, segundo a própria Secretaria Municipal de Educação. A pressão das famílias motivou a criação de dispositivos de monitoramento dos quais participam entidades ligadas à educação e à pesquisa, advogados, promotores, a Defensoria Pública e o Ministério Público. Uma primeira vitória foi obter dos candidatos à prefeitura de São Paulo um termo de compromisso visando zerar o déficit de vagas na rede pública em creches e pré-escolas, além de promover um ensino de qualidade e o planejamento público com controle social.

O compromisso trouxe frutos hoje ameaçados pela possibilidade de “voucherização” do direito à educação. Ao invés da prefeitura prover vagas, a proposta, ainda não aprovada na Câmara Municipal, seria repassar um auxílio financeiro para as famílias contratarem instituições privadas. Além da quantia proposta ser distanciada da realidade, a monetarização por vouchers e vales é criticada por muitos educadores porque tende à privatização do ensino e não oferece garantia de qualidade. Na pandemia, a Prefeitura de São Paulo implantou o programa “merenda em casa” por meio de cartões de compra, o que para alguns faz sentido numa situação de confinamento, mas pode servir como precedente perigoso de repassar ao setor privado as obrigações do Estado.

O cumprimento das grandes diretrizes do ECA está necessariamente associado às políticas públicas para redução de pobreza, investimentos em saúde e educação pela vasta extensão do território brasileiro e o volume significativo de recursos envolvidos.

O período entre 1990 e 2017 consolida um novo paradigma na gestão da coisa pública, a começar pela redução do sub-registro civil. Há 30 anos, apenas 66% das crianças brasileiras eram registradas no ano de seu nascimento. Em 1997, graças a uma Lei Federal, o registro civil e a emissão da primeira via da certidão de nascimento tornaram-se gratuitos. Em 2013, 95% das crianças3 são registradas no ano de seu nascimento. Oficializar os números é fundamental para a distribuição de vagas em escolas, prover equipamentos de saúde, programas de redistribuição de renda e outras iniciativas que tiraram milhões de brasileiros da miséria.

Os resultados são notáveis: entre 1990 e 2017 a taxa de mortalidade infantil de crianças de até 1 ano cai de 47,1 para 13,4 mortes para cada mil nascidos vivos,4 a taxa da mortalidade na infância é reduzida em 71%, passando dos 53,7 óbitos por mil nascidos vivos para 15, 6.5

Os dados da saúde refletem na educação: há 30 anos o Brasil convivia com altos índices de analfabetismo e milhões de crianças fora da escola. O Ensino Fundamental foi ampliado para 9 anos e a idade escolar obrigatória, estendida na faixa etária entre 4 e 17 anos de idade. Entre 1990 e 2017, o percentual de crianças e adolescentes fora da escola cai de 19,6% para 4,7%. A taxa de analfabetismo entre 10 e 18 anos tem uma redução de 88,8%, passa de 12,5% para 1,4%. Entre os adolescentes negros a queda chega a cerca de 91%, para ficarmos apenas em alguns números que refletem o resultado de duas décadas de políticas públicas.6

Apesar de todos os avanços, quando a pandemia se instaura no território nacional muito ainda restava a ser feito no tocante aos direitos da criança e do adolescente: ampliar o acesso ao saneamento básico, prover a todos uma educação de qualidade, expandir a rede de varas especializadas para a Infância e a Juventude, reduzir os índices de violência física, de abuso sexual e de trabalho infantil: 2,7 milhões de brasileiros entre 5 e 17 anos trabalhavam em 2015,7 sobretudo meninos negros das zonas urbanas e meninas envolvidas no serviço doméstico, numa clara comprovação de que a questão do trabalho infantil tem gênero e raça bem definidos. O mesmo se  dá em relação ao combate à desnutrição crônica, que em 2017 atingia 30% das crianças indígenas.8

Se a pandemia escancara o abismo social brasileiro, uma vez que a situação se deteriora de acordo com a escala social e a cor da pele, seria um erro imputar ao vírus a totalidade da situação em curso. O advento da Covid-19 exacerba a degradação do serviço público que vem se acelerando desde o segundo mandato do governo Dilma (2015-2016), quando o Orçamento da Criança “senso estrito” passa de 4,1% a 2,9% do orçamento geral da União, enquanto a versão ampliada das verbas destinadas à crianças e adolescentes cai de 15,3% para 5,7%.9

O investimento público continua em queda com o governo Temer (2016-2018), numa corrente de ações alinhadas ao ideário neoliberal do Estado mínimo que visa eliminar as conquistas cidadãs da Constituição de 1988.

Alguns índices são eloquentes: a taxa de mortalidade infantil, que vinha em queda vertiginosa, cresce em 2016. Volta a cair em 2017 porém não chega ao patamar mínimo atingido em 2015. A partir de 2016 há uma redução marcante na vacinação de crianças contra a poliomielite, tríplice viral (sarampo, caxumba, rubéola) e DTP (difteria, tétano e coqueluche), num claro desestímulo por parte da gestão pública.10

Vale ressaltar que desde 1990 a taxa de homicídios de crianças e adolescentes é a única área na qual o Brasil denota uma piora persistente, sinalizando o agravamento da forma mais extrema de violação de direitos – escalada que aponta as raízes da política da morte e da banalização do sofrimento atualmente instauradas em nosso país.

Além das questões específicas da realidade brasileira, outros pontos devem ser destacados, como o crescimento exponencial dos casos de sobrepeso e obesidade em todas as faixas de renda e regiões brasileiras, um problema que afeta as populações do globo que consomem alimentos industrializados.11 O aumento do número de casos de depressão e de suicídios oferece uma medida do estresse emocional e mental ao qual são submetidos crianças e adolescentes por fatores como um ambiente digital saturado com desinformação, conteúdos falsos e incitação ao ódio, os efeitos da crise do clima, a pressão por sucesso e consumo, apontando que há um contingente crescente de jovens expostos a situações difíceis para sua subjetividade. Um grave problema de saúde mental que se agrava com a pandemia.

Em que pese as graves deficiências, convém celebrar as conquistas: ao longo dos 30 anos o ECA deu visibilidade aos direitos fundamentais de crianças e adolescentes e implantou engrenagens capazes de garantir o cumprimento e aferição destes direitos. Um sistema cujo funcionamento foi drasticamente afetado pela pandemia. Como resultado imediato, o abismo social se aprofunda. Ali onde a família e a comunidade sucumbem à precariedade, a presença das instituições se faz mais relevante: as crianças e os adolescentes das famílias pobres são os que mais dependem da proteção do Estado prevista na Constituição.

Para as famílias que sobreviviam em condições precárias, a situação se agrava na pandemia. Segundo pesquisa do Datafolha,12 cerca de 24% dos estudantes de escolas públicas não teve acesso à educação remota, seja por limitações técnicas e materiais, seja pelo despreparo de professores e dos próprios alunos. O fechamento das escolas implica uma dupla perda: a descontinuidade do processo educacional e a falta da merenda, para muitas crianças a principal refeição do dia.

Sem a escola, as mães não têm com quem deixar os filhos quando vão trabalhar – sabemos que a quarentena é uma medida profilática acessível apenas a parte da população. O direito à saúde se vê igualmente comprometido, pois com frequência é no ambiente escolar que são detectados os sinais de violências praticadas contra as crianças.

A falta de um planejamento estratégico para contornar os danos provocados pela interrupção de aulas presenciais pode acarretar, por exemplo, altos índices de evasão escolar nas camadas mais pobres da população. Por outro lado, a crise econômica fez com que, segundo dados da Secretaria Municipal da Educação, esteja em curso uma importante evasão de 73% de alunos na faixa de 4 a 6 anos da rede privada para a rede pública no segundo semestre de 2020.13

O abismo crescente entre direitos constitucionais e a ausência de políticas sociais efetivas para garanti-los se reflete, por exemplo, no registro, em julho de 2020, de mais de 200 mortes de grávidas e puérperas no Brasil, correspondendo a alarmantes 77% dos óbitos mundiais. Uma tragédia que poderia ser evitada com exames pré-natais e os devidos cuidados às parturientes.14

A maré conservadora está na razão direta da precarização das condições de trabalho e do empobrecimento da população que incidem em dois pilares do suporte à criança e ao adolescente: a família e a comunidade. Quando o terceiro pilar do tripé, o Estado, também falha, chegamos ao Brasil do governo Bolsonaro, que substituiu o direito ao futuro pela morte no presente.

No decorrer dos próximos meses, é provável que a pauta conservadora procure desviar o foco da incompetência do governo federal e do descaso aos direitos básicos garantidos pelo ECA para questões moralistas, do agrado da bancada evangélica, e outros projetos de cunho conservador, como a redução da maioridade penal.

Nem tudo está perdido: a litigância estratégica continua sendo um mecanismo importante para fazer cumprir os dispositivos legais na defesa contra os ataques que vem sendo desferidos aos direitos da criança e do adolescente e algumas vitórias podem ser celebradas, como a aprovação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb). A permanência dos direitos conquistados requer vigilância, o momento é de mobilização e atenção. Resistiremos.

 

1 Rubens Naves é advogado, professor aposentado da Faculdade de Direito da PUC-SP, ex-presidente e conselheiro da Fundação Abrinq, integra o comitê de assessoramento da Coordenadoria da Infância e Juventude do TJSP. Cf.: http://lattes.cnpq.br/9434311692222431; Maria Lygia Quartim de Moraes é socióloga, professora titular aposentada da Unicamp, professora visitante da Unifesp-Baixada Santista e pesquisadora do CNPq. http://lattes.cnpq.br/6832023291977489
2 Fundação ABRINQ. Um Brasil para as crianças e os adolescentes – VI Relatório – Avaliação da Gestão 2015-2018. São Paulo: Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, 2018.
3 UNICEF. ECA 25 anos: Avanços e desafios para a infância e a adolescência no Brasil. Brasília: UNICEF, 2015.
4 BRASIL. Ministério da Saúde. Sistema de Vigilância Sanitária. CGIAE – SIM/Sinasc e Busca Ativa.
5 ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE (OPAS). 30 anos de SUS – Que SUS para 2030? Brasília: OPAS, 2018. Disponível em: <http://iris.paho.org/xmlui/handle/ 123456789/49663>. Acesso em: 25 out. 2019.
6 UNICEF. Eleições 2018 – Mais que promessas – Compromissos reais com a infância e a adolescência no Brasil. Brasília: UNICEF, 2018.
7 UNICEF. ECA 25 anos: Avanços e desafios para a infância e a adolescência no Brasil. Brasília: UNICEF, 2015.
8 UNICEF. Eleições 2018 – Mais que promessas – Compromissos reais com a infância e a adolescência no Brasil. Brasília: UNICEF, 2018.
9 FUNDAÇÃO ABRINQ. Um Brasil para as crianças e os adolescentes – VI Relatório – Avaliação da Gestão 2015-2018. São Paulo: Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do Adolescente, 2018.
10 DATASUS. Sistema de Informação Sobre Mortalidade (SIM). Disponível em: <http://datasus.saude.gov.br/sistemas-e-aplicativos/eventos-v/sim-sistema-de-informacoes-de-mortalidade>; DATASUS. Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) – Número de óbitos maternos por cem mil nascidos vivos. Disponível em: <http://datasus.saude.gov.br/sistemas-e-aplicativos/eventos-v/sinasc- sistema-de-informacoes-de-nascidos-vivos>. Acessos em: 1 nov. 2019.
11 Fonte: POF – Pesquisa de Orçamentos Familiares, 2008/2009; BLOCH, K. V.; CARDOSO, M. A.; SICHIERI, R. Estudo dos Riscos Cardiovasculares em Adolescentes (ERICA): resultados e potencialidade. Revista de Saúde Pública, v. 50, supl. 1, 23 fev. 2016, p. 1s-3s. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/rsp/v50s1/pt_0034-8910-rsp-S01518-8787201605000SUPL1AP.pdf>. Acesso em: 6 nov. 2019.
12https://drive.google.com/file/d/1nnW9c3JlJRi-Px0jve3KWDjl8fj7UYxJ/view.
13educacao.estadao.com.br/noticias/geral,com-saidas-da-rede-privada-matriculas-sobem-73-na--pre-escola-publica-de-sp,70003397637#:~:text=Com%20saída%20de%20alunos%20da,pública%20de%20SP%20-%20Educação%20-%20Estadão.
14 Cf.: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2020/07/caso-unico-brasil-passa-de-200-mortesde-gravidas-e-puerperas-por-Covid-19.shtml.

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